sábado, 25 de janeiro de 2014

Dinheiro suado, pensamos antes de gastar, diz dependente de crack


Com duas notas nas mãos, uma de R$ 100 e outra de R$ 20, Marcio Allan Ramos diz saber bem como gastará o salário de oito dias de trabalho, na região da Cracolândia, no centro de São Paulo: R$ 60 irão para cuidar dos poucos dentes que ainda tem, uma parte será usada para comprar uma bermuda e, outra, para uma sandália. Talvez use um pouco para comprar crack, diz.

“Não vou dizer que não vou mais usar crack. Mas primeiro vou me melhorar”, afirma, com um sorriso. “Tô procurando parar aos poucos. O suado a gente pensa duas vezes antes de gastar”, diz, referindo-se ao dinheiro que havia acabado de receber da Prefeitura de São Paulo.

Na labuta desde quinta-feira, 16, Marcio, de 42 anos, passou os últimos dias limpando ruas da Cracolândia, onde vive há oito anos, e recebeu, nesta sexta, 24, o primeiro salário do programa “Operação Braços Abertos”, da Prefeitura de São Paulo, para a reabilitação de dependentes químicos da região central da capital paulista.

Uma nova chance

“É um recomeço”, diz. Desde a semana passada, Marcio está morando em um hotel na região e ganha, por dia, R$ 15 para trabalhar quatro horas e participar de um curso de capacitação de duas horas todos os dias, de segunda a sexta-feira.

Há oito anos, mesmo período que vive na Cracolândia, ele não consegue emprego fixo e vive à base de bicos e de dinheiro “passado”, como conta. Ao pegar as duas notas, Marcio diz ter receio de que a ajuda acabe. “A coisa tá meio bagunçada ainda. Muitos saíram do programa. Muitos vão gastar o dinheiro com drogas. Mas espero que não desmanchem por causa desses aí”, diz.

Segundo o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), dos 300 inscritos, 292 têm frequentado o curso e trabalhado; duas pessoas foram retiradas da região por suas famílias e seis desistiram. Ontem, depois de uma ação surpresa de policiais do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) da Polícia Civil, Haddad chegou a falar que o programa corria risco e classificou a operação como “lamentável”.

Segundo o Denarc, a ação foi para prender um traficante, sem avisar a prefeitura nem a Polícia Militar. Com o uso de diversas bombas de efeito moral, spray de gás de pimenta e relatos de uso de bala de borracha por policiais, a operação terminou com pelo menos 30 detenções e quatro prisões e gerou tumulto, corre-corre e pânico na região. Mais de duas dezenas de policiais atuaram na repressão.

“Não somos violentos”

Massaro Honda Junior, de 53 anos, assistiu ao curso de capacitação nesta sexta-feira com uma faixa branca no braço. “Tá simbolizando a paz”, afirma. “Nós, drogados, sem perspectiva de vida, resolvemos trabalhar e nós não somos violentos como a polícia prega.”

Depois de receber os R$ 120 da prefeitura, diz que quer mudar de vida por suas filhas pequenas, de oito e nove anos. Preso por assalto a mão armada e tráfico de drogas, voltou à liberdade há três anos e, desde então, mora na Cracolândia, sem emprego fixo.

Vera Lucia pegou o dinheiro e correu para a igreja para agradecer a “papai do céu”. Também com uma faixa branca no braço, para protestar contra a polícia, Fabio Pereira da Silva, de 32 anos, diz que vai tentar juntar dinheiro para visitar a família na Bahia.

Ministério da Justiça

A entrega do primeiro salário aos dependentes químicos foi tratada como uma “solenidade” pelo Ministério da Justiça, um dia depois da ação do Denarc.

Representando o governo federal, o secretário nacional de políticas sobre drogas do ministério, Vitore Maximiano, participou da entrega do salário. A prefeitura, no entanto, evitou tratar o pagamento como um “evento”, para não gerar constrangimentos aos dependentes químicos, e informou que era apenas mais um dia de curso no instituto Dom Bosco, perto da Cracolândia, no centro.

O secretário nacional de políticas sobre drogas criticou a atuação da Polícia Civil na região. “A avaliação das pessoas que estavam na área, dos próprios usuários, é de que foi uma ação desastrosa, uma ação que à primeira vista não devia ter ocorrido da forma como ocorreu”, disse Maximiano, em São Paulo.

A ação do Denarc colocou em lados opostos a prefeitura e o governo estadual, de Geraldo Alckmin (PSDB), responsável pela Polícia Civil. O governador, no entanto, disse nesta sexta que não se pode fazer “picuinha partidária” sobre o caso.

Campanha eleitoral

Desde que lançou o programa “Operação Braços Abertos”, Haddad tem evitado o uso da ação policial na região. Com isso, o prefeito pretende fazer um contraponto à ação violenta da polícia em 2012, em operação articulada pelo então prefeito Gilberto Kassab (PSD) com Alckmin (PSDB), que gerou fortes críticas e não resolveu o problema.

Bandeira da gestão municipal, o “Braços Abertos” é acompanhado de perto pelo prefeito, que tem feito visitas frequentes à região sem avisar a imprensa. Horas antes da ação do Denarc, o ministro da Saúde e pré-candidato ao governo paulista, Alexandre Padilha (PT), havia visitado a Cracolândia. O ministro destinou R$ 3 milhões à região e deve explorar isso em sua campanha eleitoral.  Se for bem sucedido, o programa de Haddad servirá de bandeira para Padilha na campanha pelo governo do Estado.

Fonte: Valor 

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